terça-feira, 28 de julho de 2015

O dia da saudade do maluco beleza





Tenho uma relação íntima com Raulzito. Além de compartilhamos o mesmo nome, que por acaso tem influência direta do roqueiro baiano, convivi, durante toda a minha infância, com quadros do seu rosto pela casa e com a sua discografia no som do salão de meu pai. Durante um bom tempo o deixei de lado e recentemente voltei a ouví-lo. Tornei suas letras uma espécie de terapia. Todas as vezes que me sentia triste, com raiva ou ansioso, existia alguma música que me compreendia, que me abraçava e que me bagunçava. Raul Seixas faria 70 anos neste domingo.
Entender o baiano é impossível. Qual era a dele? Rock ou Baião? Esquerda ou direita? Satanista, ocultista ou cristão? Minha vó dizia que o adorava. Segundo ela, Gita é sobre Deus. Porém, eu não sei. Raul era extremamente subjetivo. Acho que todo mundo se identifica com suas letras, por mais que os pensamentos sejam distintos. Talvez o maior compositor brasileiro, talvez um grande merda também.
Mosca na Sopa, a primeira música do “Krig-Ha Bandolo”, disco de estreia, apresenta o que Raul Seixas seria como artista. Ele não veio simplesmente pra te abraçar, ele veio pra incomodar, te balançar, fazer refletir e novamente te abraçar. A música seguinte, “Metamorfose Ambulante”, parece introduzir o ouvinte dentro da sua cabeça. Para muitos, este disco é o melhor da sua carreira. A revista Rolling Stones o considera um dos melhores discos brasileiros de todos os tempos. Indiscutivelmente (ou não), os seus primeiros CDs são os melhores, porém, particularmente, meu disco favorito é “Há dez mil anos atrás”. Isso não significa desmerecer “Cachorro-Urubu”, “A Hora do Trem Passar”, “As Minas do Rei Salomão” e “Ouro de Tolo”, pelo contrário.
Devagar
Veja quanto livro na estante
Dom Quixote, o cavaleiro andante
Luta a vida inteira contra o rei
Joga as cartas, leia minha sorte
Tanto faz a vida como a morte
O pior de tudo eu já passei
Do passado eu me esqueci
No presente eu me perdi
Se chamarem, diga que eu saí
Do passado eu me esqueci
No presente eu me perdi
Se chamarem, diga que eu saí
Se chamarem, diga que eu saí

E quantas vezes pedi pro moço do disco voador me levar? Aquela sensação de não pertencimento a um lugar, nas palavras de Raul, enquanto tinha tanta estrela por aí? TalvezGita seja o disco mais ideológico do artista. “Medo da Chuva” desconstrói e discute a ideia de amor romântico, do casamento normativo e do tradicional estilo de vida da maioria dos cristãos. Enfrentar as verdades da voz de Raul dói, mas nos tira do lugar comum, eleva o espírito, por mais que tudo, talvez, seja muito ateu. Marcar “Sociedade Alternativa” no meio de Gita o torna político e grandioso. Era a construção de uma tese a ser defendida.
O “Novo Aeon” nos trás o lado religioso, mas começa invocando o demônio em “Rock do Diabo” e tirando uma onda de Deus em “Para Nóia”. Ele nos trás também o lado anticapitalista do baiano, que aparece em “Ouro de Tolo” e retorna em “É Fim de Mês”. Mas também nega-se a qualquer ideologia, apesar de ser extremamente ideológico, numa contradição entre “A Maçã” e “Eu Sou Egoísta”. Enquanto o disco “O Dia em que a Terra Parou”, reafirma que tudo não passa de uma viagem da cabeça do Maluco Beleza e que também o confirma como profeta do apocalipse.
Eu calço é 37
Meu pai me dá 36
Dói, mas no dia seguinte
Aperto meu pé outra vez
Eu aperto meu pé outra vez
Pai eu já tô crescidinho
Pague pra ver, que eu aposto
Vou escolher meu sapato
E andar do jeito que eu gosto
E andar do jeito que eu gosto

Como já afirmei, o meu disco favorito é “Há 10 mil anos atrás”. Essa produção é a maior união estética, espiritual e ideológica da música brasileira. Lembrando que estamos falando da década de 70, um dos períodos mais conturbados da ditadura civil militar brasileira. O mais incrível é que a censura da época não segurou esse disco. As letras de Raul são tão elevadas que “Meu Amigo Pedro”, “Eu também vou reclamar” e “Quando você crescer” não foram barrados pela censura da ditadura que se preocupava mais com o viés moral do que político.
Além desses discos não deveríamos esquecer de “Por quem os sinos dobram”, que reúne as músicas “A Ilha da Fantasia”, “O Segredo do Universo” e “Requiem para uma flor”. Outras duas produções relevantes da sua carreira são “Abre-te Sésamo” e “Mata-Virgem”, onde sua faixa título é uma das mais belas canções de amor do artista.
Se o Brasil já teve algum Rock Star na sua história, esse nome é Raul Seixas. Ele representa muito bem a mistura de elementos que compõe a cultura brasileira. Para qualquer amante que respeite a nossa música, desmerecer Raul é desmerecer toda essa construção histórica. Raul é o pastor, o militante, o místico e o libertário da música brasileira.
Lembro Pedro aqueles velhos dias
Quando os dois pensavam sobre o mundo
Hoje eu te chamo de careta
E você me chama vagabundo
Pedro onde você vai eu também vou
Mas, tudo acaba onde começou
Todos os caminhos são iguais
O que leva à glória ou a perdição
Há tantos caminhos, tantas portas
Mas, somente um tem coração
E eu não tenho nada a te dizer
Mas, não me critique como eu sou
Cada um de nós é um universo, Pedro
Onde você vai eu também vou

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Falta de respeito ou falta de interpretação?

Reuters/Joao Castellano


Na parada LGBT, acontecida no último domingo, uma atriz transexual interpretou Jesus Cristo pregado em uma cruz em um dos trios elétricos que ajudavam na condução de milhões de pessoas pela avenida paulista em São Paulo. Logo em seguida, várias páginas e figuras cristãs católicas e evangélicas começaram a condenar a encenação como algo que feria o respeito à religião. O que essas pessoas não perceberam é a profunda contradição em que se meteram.

O ato de crucificar é diretamente ligado ao sentido de condenar. Nós, brasileiros, condenamos a população LGBT, em vários sentidos, por não seguir a risca um modelo de uma sociedade tradicional. Jesus, da mesma forma, foi condenado por esses motivos e foi morto. Ele andava com todos os tipos de pessoas porque era um ser extremamente ideológico. Tinha o perdão, o respeito e igualdade como princípios de vida. Mesmo assim, o povo e o estado da época o condenaram à morte porque era um subversivo e ia de encontro a determinadas normas daquele tempo.

O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Nós fazemos parte de uma sociedade que condena e extermina essa população. Nossos semelhantes. A moça na imagem é um ato simbólico. Uma metáfora. Ela é carregada de simbologia e tenta chocar para causar reflexão: é esse tipo de sociedade que a gente quer? Uma sociedade preconceituosa e assassina? Jesus, com absoluta certeza, não estaria de acordo com isso. Ele é amor, aceitação e perdão.

Nunca vi algo tão Cristão dialogando com a população LGBT como essa manifestação. Ela passa exatamente o que se espera de um cristão, respeito e amor ao próximo. A interpretação rápida e pouca profunda da imagem é sintomática. A parada que aconteceu ontem reuniu milhões de pessoas, que em sua grande maioria, com certeza, são cristãs católicas. Porque o uso de um símbolo cristão pode ficar restrito somente a determinados grupos?

Eu, seguidor também de Jesus Cristo, chamo isso de coerência, de simbologia cristã. Não achei nada de desrespeitoso, blasfêmia ou zuação, pelo contrário, achei cristão, reflexivo. Qual é o problema de uma atriz transexual interpretar Jesus, como personagem e símbolo dessa ideologia? Da mesma forma não interpretam Jesus em encenações ligadas diretamente ao catolicismo? Se a mensagem é a mesma, precisamos respeitar uma população que sofre e morre todos os dias por falta de amor ao próximo e respeito pelas diferenças, coisa que Jesus foi radicalmente a favor, ela tem total relação com a mensagem de Jesus que é também a mensagem do cristianismo.

De cristão a condenador não existe nada menos do que uma linha frágil.