domingo, 9 de agosto de 2015

Comentários sobre Interstellar (2014) de Cristopher Nolan

Essa foi a minha primeira experiência com um filme do Cristopher Nolan após um bombardeio de críticas que eu ouvi sobre o método extremamente explicativo do diretor. Nunca parei para analisar a existência de personagens chaves que em determinado momento dos longas surgiriam com diálogos entre outros personagens explicando determinado contexto, acontecimento ou narrativa que Nolan não conseguiu transmitir através da imagem.

Essa é uma crítica válida. Li, recentemente, em um livro sobre cinema e educação que se é pra contar uma história através da fala (diálogos e narração) não é necessário o cinema. Uma conversa daria conta disso. Escrever um livro daria conta disso. O cinema é uma arte que tem sua própria linguagem. Saber usar esse instrumento sem apelar a escolhas óbvias e fáceis é uma das grandes qualidades de um diretor.
 
Matthew McConaughey é um ótimo ator. Incrivel como, até o ano passado, eu nunca tinha ouvido falar dele e do nada surge "True Detective", "O Lobo de Wall Street" e "Clube de Compras Dallas"

Os efeitos visuais são muito bons, me lembrou bastante "Gravidade" e "2001: Uma Odisséia no Espaço". Outra semelhança entre Interstellar com esses filmes são as questões filosóficas sobre a pequenez humana, tão comum em filmes de viagens no espaço

Muitas expectativas para os seus próximos papéis, cara!
Porém em Interstellar, último filme lançado de Nolan e o primeiro após o fim da trilogia Batman, esses elementos não me incomodaram. Acredito que até me ajudaram, de uma forma bem pobre, a me inserir dentro de um assunto que tenho pouco conhecimento. A explicação de um dos astronautas mais as passagens da tripulação pelo “buraco de minhoca” me ajudaram a entender o que é aquele fenômeno.

Mas o que realmente me incomodou em Interstellar é o final ambíguo que o diretor repetiu em mais um filme. Não sei se o Nolan acredita que isso pode transformar em uma marca registrada das suas obras ou que isso torne a sua filmografia em cinema de autor. Deve ser isso. Porém, esse recurso não traz nada que caracterize uma marca de artista, pode até render a ideia de que, não sabendo resolver seus roteiros, apela para o subjetivo deixando para o telespectador a responsabilidade de terminar a história.



terça-feira, 28 de julho de 2015

O dia da saudade do maluco beleza





Tenho uma relação íntima com Raulzito. Além de compartilhamos o mesmo nome, que por acaso tem influência direta do roqueiro baiano, convivi, durante toda a minha infância, com quadros do seu rosto pela casa e com a sua discografia no som do salão de meu pai. Durante um bom tempo o deixei de lado e recentemente voltei a ouví-lo. Tornei suas letras uma espécie de terapia. Todas as vezes que me sentia triste, com raiva ou ansioso, existia alguma música que me compreendia, que me abraçava e que me bagunçava. Raul Seixas faria 70 anos neste domingo.
Entender o baiano é impossível. Qual era a dele? Rock ou Baião? Esquerda ou direita? Satanista, ocultista ou cristão? Minha vó dizia que o adorava. Segundo ela, Gita é sobre Deus. Porém, eu não sei. Raul era extremamente subjetivo. Acho que todo mundo se identifica com suas letras, por mais que os pensamentos sejam distintos. Talvez o maior compositor brasileiro, talvez um grande merda também.
Mosca na Sopa, a primeira música do “Krig-Ha Bandolo”, disco de estreia, apresenta o que Raul Seixas seria como artista. Ele não veio simplesmente pra te abraçar, ele veio pra incomodar, te balançar, fazer refletir e novamente te abraçar. A música seguinte, “Metamorfose Ambulante”, parece introduzir o ouvinte dentro da sua cabeça. Para muitos, este disco é o melhor da sua carreira. A revista Rolling Stones o considera um dos melhores discos brasileiros de todos os tempos. Indiscutivelmente (ou não), os seus primeiros CDs são os melhores, porém, particularmente, meu disco favorito é “Há dez mil anos atrás”. Isso não significa desmerecer “Cachorro-Urubu”, “A Hora do Trem Passar”, “As Minas do Rei Salomão” e “Ouro de Tolo”, pelo contrário.
Devagar
Veja quanto livro na estante
Dom Quixote, o cavaleiro andante
Luta a vida inteira contra o rei
Joga as cartas, leia minha sorte
Tanto faz a vida como a morte
O pior de tudo eu já passei
Do passado eu me esqueci
No presente eu me perdi
Se chamarem, diga que eu saí
Do passado eu me esqueci
No presente eu me perdi
Se chamarem, diga que eu saí
Se chamarem, diga que eu saí

E quantas vezes pedi pro moço do disco voador me levar? Aquela sensação de não pertencimento a um lugar, nas palavras de Raul, enquanto tinha tanta estrela por aí? TalvezGita seja o disco mais ideológico do artista. “Medo da Chuva” desconstrói e discute a ideia de amor romântico, do casamento normativo e do tradicional estilo de vida da maioria dos cristãos. Enfrentar as verdades da voz de Raul dói, mas nos tira do lugar comum, eleva o espírito, por mais que tudo, talvez, seja muito ateu. Marcar “Sociedade Alternativa” no meio de Gita o torna político e grandioso. Era a construção de uma tese a ser defendida.
O “Novo Aeon” nos trás o lado religioso, mas começa invocando o demônio em “Rock do Diabo” e tirando uma onda de Deus em “Para Nóia”. Ele nos trás também o lado anticapitalista do baiano, que aparece em “Ouro de Tolo” e retorna em “É Fim de Mês”. Mas também nega-se a qualquer ideologia, apesar de ser extremamente ideológico, numa contradição entre “A Maçã” e “Eu Sou Egoísta”. Enquanto o disco “O Dia em que a Terra Parou”, reafirma que tudo não passa de uma viagem da cabeça do Maluco Beleza e que também o confirma como profeta do apocalipse.
Eu calço é 37
Meu pai me dá 36
Dói, mas no dia seguinte
Aperto meu pé outra vez
Eu aperto meu pé outra vez
Pai eu já tô crescidinho
Pague pra ver, que eu aposto
Vou escolher meu sapato
E andar do jeito que eu gosto
E andar do jeito que eu gosto

Como já afirmei, o meu disco favorito é “Há 10 mil anos atrás”. Essa produção é a maior união estética, espiritual e ideológica da música brasileira. Lembrando que estamos falando da década de 70, um dos períodos mais conturbados da ditadura civil militar brasileira. O mais incrível é que a censura da época não segurou esse disco. As letras de Raul são tão elevadas que “Meu Amigo Pedro”, “Eu também vou reclamar” e “Quando você crescer” não foram barrados pela censura da ditadura que se preocupava mais com o viés moral do que político.
Além desses discos não deveríamos esquecer de “Por quem os sinos dobram”, que reúne as músicas “A Ilha da Fantasia”, “O Segredo do Universo” e “Requiem para uma flor”. Outras duas produções relevantes da sua carreira são “Abre-te Sésamo” e “Mata-Virgem”, onde sua faixa título é uma das mais belas canções de amor do artista.
Se o Brasil já teve algum Rock Star na sua história, esse nome é Raul Seixas. Ele representa muito bem a mistura de elementos que compõe a cultura brasileira. Para qualquer amante que respeite a nossa música, desmerecer Raul é desmerecer toda essa construção histórica. Raul é o pastor, o militante, o místico e o libertário da música brasileira.
Lembro Pedro aqueles velhos dias
Quando os dois pensavam sobre o mundo
Hoje eu te chamo de careta
E você me chama vagabundo
Pedro onde você vai eu também vou
Mas, tudo acaba onde começou
Todos os caminhos são iguais
O que leva à glória ou a perdição
Há tantos caminhos, tantas portas
Mas, somente um tem coração
E eu não tenho nada a te dizer
Mas, não me critique como eu sou
Cada um de nós é um universo, Pedro
Onde você vai eu também vou

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Falta de respeito ou falta de interpretação?

Reuters/Joao Castellano


Na parada LGBT, acontecida no último domingo, uma atriz transexual interpretou Jesus Cristo pregado em uma cruz em um dos trios elétricos que ajudavam na condução de milhões de pessoas pela avenida paulista em São Paulo. Logo em seguida, várias páginas e figuras cristãs católicas e evangélicas começaram a condenar a encenação como algo que feria o respeito à religião. O que essas pessoas não perceberam é a profunda contradição em que se meteram.

O ato de crucificar é diretamente ligado ao sentido de condenar. Nós, brasileiros, condenamos a população LGBT, em vários sentidos, por não seguir a risca um modelo de uma sociedade tradicional. Jesus, da mesma forma, foi condenado por esses motivos e foi morto. Ele andava com todos os tipos de pessoas porque era um ser extremamente ideológico. Tinha o perdão, o respeito e igualdade como princípios de vida. Mesmo assim, o povo e o estado da época o condenaram à morte porque era um subversivo e ia de encontro a determinadas normas daquele tempo.

O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Nós fazemos parte de uma sociedade que condena e extermina essa população. Nossos semelhantes. A moça na imagem é um ato simbólico. Uma metáfora. Ela é carregada de simbologia e tenta chocar para causar reflexão: é esse tipo de sociedade que a gente quer? Uma sociedade preconceituosa e assassina? Jesus, com absoluta certeza, não estaria de acordo com isso. Ele é amor, aceitação e perdão.

Nunca vi algo tão Cristão dialogando com a população LGBT como essa manifestação. Ela passa exatamente o que se espera de um cristão, respeito e amor ao próximo. A interpretação rápida e pouca profunda da imagem é sintomática. A parada que aconteceu ontem reuniu milhões de pessoas, que em sua grande maioria, com certeza, são cristãs católicas. Porque o uso de um símbolo cristão pode ficar restrito somente a determinados grupos?

Eu, seguidor também de Jesus Cristo, chamo isso de coerência, de simbologia cristã. Não achei nada de desrespeitoso, blasfêmia ou zuação, pelo contrário, achei cristão, reflexivo. Qual é o problema de uma atriz transexual interpretar Jesus, como personagem e símbolo dessa ideologia? Da mesma forma não interpretam Jesus em encenações ligadas diretamente ao catolicismo? Se a mensagem é a mesma, precisamos respeitar uma população que sofre e morre todos os dias por falta de amor ao próximo e respeito pelas diferenças, coisa que Jesus foi radicalmente a favor, ela tem total relação com a mensagem de Jesus que é também a mensagem do cristianismo.

De cristão a condenador não existe nada menos do que uma linha frágil.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Crítica: Ilegal



O debate sobre regulamentação da maconha tem avançado em todo o mundo. A ideia de que a proibição é um modelo que não funciona é recorrente nos debates a respeito do assunto. Talvez uma das grandes responsáveis na mudança do pensamento de uma parte da sociedade tenha sido a internet, além da militância antiproibicionista, é claro. Foi através do espaço virtual que as pessoas tiveram acesso a um conteúdo mais honesto sobre o tema, já que, de modo geral, a mídia tradicional é conservadora, principalmente no Brasil.
Ilegal, filme de 2014 de Raphael Erichsen e Tarso Araújo, surge dentro desse panorama. O longa, diferentemente de outras produções brasileiras sobre o assunto, como Cortina de Fumaça (2011) e Quebrando o Tabu (2011),  dedica todos os seus 82 min. ao debate sobre regulamentação dentro da perspectiva do uso medicinal da maconha. A produção faz isso através da história de mulheres mães de crianças com algum tipo de doença em que o CBD, composto da cannabis que não "dá barato", atua de maneira fundamental na saúde dos pequenos.
Apesar de ser bem claro à perspectiva do debate sobre a ótica do uso medicinal, o documentário perde muitas oportunidades de aprofundar e de transversalizar com a perspectiva do uso religioso, cultural, recreativo da planta e com o debate contrário a guerras às drogas –  aos pobres –  causados pela proibição.
A cena da conversa entre duas mães com o deputado Jean Wyllys é sintomática. Nela, uma das personagens fala sobre o sentimento egoísta (compreensível e justificável) de ver sua filha bem, já que o CBD por vezes zerava as convulsões que chegavam a mais de 40 por semana. Em seguida, o deputado realiza uma fala certeira sobre a importância do debate libertário e dos males que a proibição gerou à nossa sociedade, mostrando que o debate sobre o uso medicinal e libertário não são desconexos, pelo contrário, dialogam e precisam andar juntos.
O único momento no qual uma situação tranversaliza com outros setores do pensamento é durante as sequências da marcha da maconha. Nesse tipo de manifestação, todas as óticas sobre o assunto são bastante harmoniosas.
De um modo geral, o filme opta por uma zona de conforto estético, narrativo e discursivo desconfortante. A trilha sonora apela para o emocional do público na tentativa de aproximá-lo do sofrimento das personagens. Além disso, o documentário tem caráter muito televisivo e didático. Talvez, isso seja positivo no diálogo com o público mais conservador e leigo sobre o assunto, mas para os "macacos velhos" do antiproibicionismo, Ilegal pode ser apenas um lugar comum.
Outra coisa que, particularmente, me incomoda bastante no filme é a escolha dos personagens. É super válida a presença daquelas mães, porém a perspectiva de uma família de classe média, branca e de certa forma privilegiada, diminui as possibilidades de problematização do tema. Fico imaginando como seria se os diretores recorressem às mães da periferia que têm filhos com doenças parecidas com as apresentadas, às senhoras de camadas sociais mais humildes que fazem o uso da maconha através do chá para alívio das dores, às pessoas com problemas de insônia e com câncer que recorrem ao tráfico para amenizar os seus incômodos.
A contribuição pedagógica de Ilegal é super válida, apesar de pouco arriscada. O documentário pode abrir cabeças e dialogar melhor com camadas da sociedade mais preconceituosas quanto a temática, doutrinada com a ideia demonizada da maconha, através da desonestidade intelectual das campanhas contra as drogas no Brasil e do ideal conservador das mídias tradicionais. Mais do que nunca, é necessário um debate honesto sobre as drogas, apontar soluções a caminho da redução de danos e abrir os olhos da sociedade brasileira que já se acostumou e acha normal a guerra promovida pelo estado. Ilegal contribui nesse sentido.


domingo, 17 de maio de 2015

Libertário e opressor: as contradições do rap nacional

“Esse é o rap, é o rap, é o rap, eu me expresso
Muito mais que moda é manifesto
Sente o dom, é cruel, dos irmão, Deus do céu
Pra trava se pá o click blaau”
Rap é Forte – Criolo


Cone Crew Diretoria
Denunciado pela sogra, como uma retaliação as agressões que cometia a própria namorada, o música Cert do grupo de rap Cone Crew Diretoria, trouxe novamente para o debate público a política de drogas no Brasil. Encontrado com quatro pés de maconha em seu apartamento, o artista também está sendo acusado por tráfico de drogas. Tratando-se de um assunto tão delicado e que ainda é um tabu para a maioria dos brasileiros, nesse sentido, o rap cumpre o papel de vanguarda na exposição da temática para o público. Porém, ao mesmo tempo, pouco se repercutiu as acusações de agressões a sua companheira. Como uma indignação seletiva, a repercussão da história tem levado ao debate a temática antiproibicionista, super importante, mas não expõe nada sobre a violência contra a mulher. A Cone Crew Diretoria, influenciados diretamente pelo Planet Hemp, apresenta uma posição política libertária, porém, ao mesmo tempo, o grupo apresenta serias contradições ideológicas. Característica comum a muitos grupos de rap no Brasil.
O Rap nacional ganhou projeção ainda na década de 90. Grupos como o Racionais Mc’s e o Facção Central são alguns dos principais porta-vozes do estilo na década. Indiscutivelmente esses grupos trouxeram aos negros das periferias brasileiras o protagonismo da sua própria história. Negro Drama, por exemplo, pode ser considerado um hino para as favelas do Brasil. Apontando as desigualdades sociais e injustiças que sofriam a população carente brasileira, o rap surgiu naquele momento como ferramenta fundamental contra o racismo e o preconceito social.

“Não foi sempre dito que preto não tem vez?
Então, olha o castelo e não
Foi você quem fez, cuzão?”
Negro Drama – Racionais Mc’s

Racionais Mc's
Na mesma década de 90 surge no Rio de Janeiro, o Planet Hemp. Alvo de dezenas de polêmicas na época, o grupo era repreendido pelos conservadores devido as letras das suas músicas que giravam em torno da legalização da maconha, um tema ainda mais tabu naqueles tempos. Nesse sentido, o rap se coloca a frente do seu tempo. Assumindo um papel progressista e de vanguarda trazendo, através das letras do Planet Hemp, um debate que só começou a desenvolver a poucos anos no Brasil, cumprindo um papel fundamental para o antiproibicionismo no país.

“O álcool mata bancado pelo código penal
Onde quem fuma maconha é que é o marginal
E por que não legalizar? E por que não legalizar?
Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se matar”
Legalize Já – Planet Hemp

Com esse caráter contra-cultural atrelado ao fato vir da periferia, o rap cresceu sendo um produto marginalizado. Prisões, como do artista Cert, são comuns na história do rap brasileiro. Em 1997, o Planet Hemp foi preso acusado de apologia às drogas. O Racionais Mc’s também já foram presos em 94 acusados de incitar o crime e a violência. Por motivos parecidos, membros do Facção Central também foram presos.
De fato, o rap é uma ferramente militante super importante para o movimento negro e antiproibicionista. É uma resposta aos opressores. Porém, o estilo, não está livre das contradições. Pelo contrário, carrega uma série delas. Dando um caráter contraditório a voz dos oprimidos e os jogando no banco dos opressores.
O mesmo Cone Crew Diretoria no final do ano passado, por exemplo, protagonizaram um episódio lamentável nas redes sociais. O membro conhecido como Maomé postou em seu facebook uma frase extremamente machista e homofóbica. Na publicação ele critica mulheres que trocam likes e seguem de volta, afirmando: “Deveria tomar uma surra dentro de casa pra aprender a ser mulher”. Em seguida ele crítica as mesmas práticas no sexo masculino com a frase: “Já os barbados, … NA MORAL …. Vcs são mais viados do que quem dá o cú !!! Tenho nojo de vocês”. Todo esse discurso também é reproduzido em suas letras. Não só discursos pejorativos a liberdade sexual da mulher ou orientação sexual de uma maneira geral, como em Falo Nada e Chama os Mulekes, o Cone Crew reproduz normatividade e senso comum e faz vista grossa ao status quo.
Em 2013, Emicida, rapper conhecido por levar a favela em suas letras, também esteve em um episódio machista em uma das letras do seu disco O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui. Apesar de também ser autor da música Rua Augusta, um retrato humanizado de uma mãe solteira que se prostitui para sustentar o filho, Emicida escreveu a péssima Trepadeira. Na letra: “Minha tulipa, a fama dela na favela enquanto eu dava uma ripa / Tru, azeda o caruru / E os mano me falava que essa mina dava mais do que chuchu” (…) “Dei todo amor, tratei como flor / mas no fim era uma trepadeira”, deprecia uma mulher sexualmente livre e ainda aponta como punição a esse comportamento o uso da violência: “Merece era uma surra de espada de são jorge (é) / Chá de ‘comigo ninguém pode'”.

“Poupa nem os das antigas… logo um mordedor de fronha
Vai geral baixar a porrada no Pinóquio sem vergonha
Quebra o papo de cegonha que ele treme e solta as franga”
Falo Nada – Cone Crew Diretoria

Mas não é somente a nova geração que sofre essas contradições. O Racionais Mc’s apresenta uma série de letras com esses elementos. Em 1 por amor 2 por dinheiro, Mano Brown canta: “Quem é você que fala o que quer/ que se esconde igual mulher por trás da caneta/ vai Zé buceta, sai da sombra/ Cai, então toma! Seu mundo é o chão”. Na mesma música ele presta homenagem a sua raiz africana. Já em Estilo cachorro, o grupo conta a estória de um personagem masculino da favela com um certo poder aquisitivo e vida sexualmente ativa da seguinte forma: “Sexta, a Elisângela / Sábado, a Rosângela / E domingo é matinê, 16, o nome é Ângela”. Em outra parte  canta: “Au au au au, não é machismo / Fale o que quiser, o que é, é / Verme ou sangue-bom tanto faz pra mulher / não importa de onde vem nem pra que, se o que ela quer mesmo é sensação de poder”.
Porém talvez a maior contradição fique na música Qual mentira vou acreditar. Nela, Edi Rock canta um dos melhores retratos do racismo cotidiano. Desde a abordagens policiais “Eu me formei suspeito profissional / Bacharel pós-graduado em tomar geral” a uma conversa com uma garota “Que tinha bronca de neguinho de salão / Que a maioria é maloqueiro e ladrão”. O discurso racista da garota em “Disse pra ‘mim’ não falar gíria com ela, (pode crer) / Pra me lembrar que não tô na favela”, logo se torna um festival de insultos e questionamentos a vida sexual da garota: “Correu a banca toda de uns playba / Que cola lá na área” e chega ao triste verso: “Eu já tava pensando em capotar no soco”.

Karol Conká
Além disso o Rap ainda é um espaço muito restrito aos homens. Apesar da repercussão dos trabalhos de rappers como Karol Conká, Flora Matos e Lurdez da Luz, a cena ainda permanece muito fechada em círculos masculinos e ao seu universo. O protagonismo feminino tanto em discurso como em artistas ainda parece estar em um horizonte distante. Em uma entrevista ao portal Virgula no ano passado Flora Matos afirma: “O meio do rap já foi muito mais machista, (…), mas ainda existe sim. Porém, nós mulheres, quebramos isso de uma maneira muito criativa. Não vira ‘treta’, não vira ‘diz’, vira música e inspiração”. Além disso, nas letras de Karol Conká são relatadas com frequência estórias de mulheres livres e independentes que contribui com o processo de emponderamento feminino.
É quase impossível desassociar o rap do discurso político. Com contradições ou na linha de frente das temáticas, o estilo se consolida como ferramenta artística capaz de gerar reflexão e questionar o senso comum. Seja nas manifestações de afirmação da negritude com Falcão, O Bagulho é Doido, do MV Bill, seja na expressão da liberdade feminina com Batuk Freak da Karol Conká, até o grito libertário de Usuário de Planet Hemp, no grito da voz da periferia em Nada como um dia após o outro dia dos Racionais ou  no escracho das desigualdades de Convoque Seu Buda do Criolo, o Rap é compromisso e precisa superar as contradições para estar do lado daqueles que pretendem defender, isso também é um desafio da nossa sociedade.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Crítica: Birdman ou (A inesperada virtude da ignorância)



O protagonista do filme Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), Riggan Thomson (Michael Keaton), parece ser um daqueles atores marcados por uma única produção significativa em termos artísticos ou mercadológicos da sua carreira. Sucesso em décadas passadas interpretando um super-herói, Birdman, Thomson é um ator que tenta voltar ao estrelato com a sua mais nova produção, uma peça de teatro chamada: “What We Talk About When We Talk About Love”.

Dirigido por Alejandro González Iñarritu, de 21 gramas e Amores Brutos, a estória acontece em um teatro na Brodway e suas redondezas durante o final da pré-produção e apresentação do espetáculo. A montagem de Birdman é uma colagem de planos sequências como se fossem um só, parecido com o trabalho de Hitchcock em Festim diabólico, através de cortes disfarçados e diferente do filme francês Arca Russa de 2002, onde realmente não existem cortes. Um elemento estético interessante que o diretor adotou, em vários momentos do filme, é o uso de elipses (espaços de tempos) nas mudanças de sequências que variam entre passagem de movimentos de câmera pelos cômodos do teatro a mudanças sonoras e visuais nos ambientes.

Inãrritu tenta explorar um debate sobre as novas relações tecnológicas, artísticas e de comunicação no seu longa mais recente. Em muitos momentos a gente ouve referências à internet, ao jornalismo, ao mercado cinematográfico e artístico de um modo geral. Porém, ele parece se preocupar muito mais no próprio cinema, o que dá um caráter metalinguístico ao longa. Essa preocupação está principalmente relacionado com o personagem marcante na carreira do seu personagem principal, Birdman, um super-herói. O diretor tenta fazer uma dura crítica aos blockbusters do momento.

Mas, diferente da proposta de um Watchmen, com suas profundas reflexões, Birdman por vezes adota um discurso elitista e superficial. Apesar da ótima metáfora dos superpoderes do artista, que se sente um deus perante o resto dos homens, Iñarritu erra a mão ao fazer suas análises. Os objetos em que o diretor tentar fazer uma observação crítica são totalmente passíveis de um olhar mais apurado, porém ao não apresentar situações narrativas que apresentem justificativas e aprofundem o debate, o filme acaba trazendo uma temática interessante, mas com pouco argumentação.


O sub-título do filme já diz muita coisa: “A Inesperada Virtude da Ignorância”, pode soar de certa forma arrogante com o público assíduo por filmes de super-heróis, por exemplo. Isso dá uma acentuada ainda maior quando o personagem de Edward Norton, Mike, fala para Thomson: “um idiota nasce a cada segundo”, em referencia ao seu público, “as pessoas pagam por qualquer coisa”. Nesse direcionamento o filme ganha uma perspectiva parecida com aqueles pessoas de meia-idade saudosista que adoram falar como as coisas antigamente eram mais interessantes.

“Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” é um filme rico imageticamente e traz contribuições visuais e narrativas interessantes. Os diálogos entre os personagens e as relações entre o protagonista e o restante do elenco são muito divertidas, além de uma construção interessante de todos os seus personagens que tendo muito ou pouco espaço na narrativa deixam claro as suas vontades, desejos e personalidades. Não será o trabalho mais aclamado de Alejandro González Iñarritu, Amores Brutos ainda continua sendo o meu favorito, porém pode ser lembrado como um filme relevante da sua carreira.

quarta-feira, 4 de março de 2015

As semelhanças entre a família tradicional brasileira e a Família Soprano


A família tradicional brasileira, como se conhece e como ela afirma ser, é aversa a qualquer tipo de progresso. Ela afirma que é preciso retroceder pelo bem da moral (cristã) e dos bons costumes. São conservadores e acreditam que o que alcançamos quanto as liberdades individuais trata-se apenas de “semvergonhice”. Enxergam a luta por direitos uma bobagem, totalmente ligados ao status quo e sem interesse algum de fazer uma crítica madura ao senso comum. Aqueles que chamam as feministas de feminazis e a luta LGBT de ditadura gay, para eles bandido bom é bandido morto, acreditam que o nosso país está virando Cuba e que uma maior participação do povo junto ao estado seria bolivariano demais. Eles sempre existiram, mas Junho de 2013 ecoou uma voz de indignação por progressos e eles apontaram como solução o retrocesso.

James Gandolfini interprete de Tony Soprano na série da HBO
Dizer que Tony Soprano, personagem principal da série The Sopranos da HBO e a “família tradicional brasileira” são iguais seria um tremendo exagero. Porém, não excluo a possibilidade de existirem perfis muito parecidos. A questão que tentaremos explorar nesse texto são as semelhanças entre a família do seriado e esse modelo de família propagandeado pelos conservadores.

The Sopranos acompanha o cotidiano da família que dá nome a série. O chefe, Tony Soprano, é “O poderoso chefão” ou boss da máfia que atua numa determinada região dos Estados Unidos. Com um bom filme de máfia, os Sopranos são descendentes de italianos e tem uma herança histórica baseada na corrupção, roubos e mortes. De origem cristã católica, preservam a moral e bons costumes tradicionais e patriarcais.

Tony Soprano é do tipo anti-herói. Ele é o personagem principal da narrativa e junto a uma maravilhosa execução da série, considerado uma das melhores produções da televisão de todos os tempos, conseguimos acompanhar e torcer pelo personagem. Mesmo suas motivações sendo escrotas e tortas, mesmo o personagem sendo corrupto, assassino, preconceituoso e oportunista, nos afeiçoamos a ele e queremos que ele se livre das atrocidades que comete.


A história é muito bem contada. Sem pressa, consegue mostrar um personagem complexo, suas frustrações e medos. Sim! Tony, apesar de manter escondido, frequenta a clínica de uma psicóloga. Essas visitas acontecem de forma sigilosa, afinal seria mostrar fraqueza demais para alguém tão alto numa hierarquia da máfia, totalmente ligado a figura do homem como ser insensível e “macho”, se consultar com uma psicóloga. O anfitrião Soprano brocha, tem medo, tem sentimentos (apesar de não demostrá-los com frequência), é corrupto e egocêntrico.

A primeira semelhança entre a família Soprano e a família tradicional é a herança privilegiada baseado em coisas não muita justas. Isso é claro na narrativa do seriado, a riqueza da família Soprano é baseada numa tradição mafiosa dos seus antepassados. No Brasil, temos o histórico claro de privilégios dos brancos e europeus, enquanto os negros africanos vieram para o nosso país para serem escravizados e após sua libertação não tiveram acesso as terras nem riquezas que geraram, dando origem às periferias brasileiras. Todo esse histórico, mesmo que de muito tempo, ainda reflete na realidade contemporânea. Aqui a semelhança entre essas famílias se destaca pela herança privilegiada, onde muitas vezes esses próprios indivíduos não observam esse detalhe e justificam a sua realidade de conforto com base na meritocracia.

Outro ponto interessante do seriado é o nível de hipocrisia do seu protagonista, muito semelhante ao clichê do dito “tradicional”. Em determinado episódio da segunda temporada, Tony Soprano, em um diálogo com sua mulher, mostra-se preocupado com as companhias do seu filho. No mesmo episódio, o boss havia matado um personagem pouco importante para o enredo. Não devemos analisar essa situação ao pé da letra. O que é interessante ressaltar aqui é que apesar de cometer erros, o personagem quer passar uma moral puritana, de acordo com seus interesses, para as outras pessoas.

Em todos os episódios, Tony mostra-se pouco preocupado com as questões coletivas. Além de considerar bobagem toda e qualquer forma de conhecimento social, afinal seu filho homem, que ele pretende manter uma herança de liderança de família, passa a questionar o senso comum. Tony Soprano também é machista, preconceituoso e homofóbico e tem como meta de vida preservar a família, apesar de trair com frequência a mulher com quem é casado.

Família Soprano
Tony Soprano, todos os seus aliados e sua família têm muita semelhança com o esse modelo de família tradicional. Modelo este que concentra a análise de sociedade baseado apenas na sua realidade que, apesar de cristã, tem poucas ações coletivas, que apesar de errar adora apontar os erros dos outros e que apesar de ter desejos e no íntimo fugir da normatividade, ainda bate o pé pela manutenção de algo superado. 

Em outro episódio o Soprano encontra seu filho fumando maconha e cria um grande barraco por causa disso. Em momento nenhum, o personagem tem uma conversa franca sobre drogas com o filho, ao mesmo tempo em que é ligado diretamente ao tráfico de drogas daquela região. Na verdade, Tony, em nenhum momento, mostra-se preocupado em ter uma conversa franca e madura sobre temas polêmicos, pelo contrário, ela adora oprimir as coisas ao seu redor, enquanto muitas vezes tem ligações diretas com esse tipo de coisa.

Pelo perfil do personagem, podemos dizer com clara certeza que ele seria desfavorável a uma regulamentação das drogas e acredita que os seus usuários são vagabundos ou coisas do tipo. Como numa cena onde tem uma discussão séria com seu sobrinho pelo fato dele usar cocaína, porém ele é um frequente usuário de whisky. O que é muito semelhante com uma parcela da sociedade brasileira, por exemplo, cuja boa parte mostra-se contrária a uma legalização das drogas, mas costuma beber com frequência.

Tony também adora aproveitar das situações em seu favor. Odeia os policias que o perseguem, mas é camarada dos mesmos que aliviam as coisas para o seu lado. Seja através de propina ou não. Situação que parece semelhante com muitas situações do cotidiano brasileiro. Ao mesmo tempo que se ouve muita reclamação em cima das ações do estado, também observa-se diariamente as mesmas pessoas super atenciosas em encontrar brechas que as beneficiem.

Tony Soprano é do tipo de xingar os filhos por que eles xingaram. Também sofre de uma indignação seletiva, de acordo com os seus interesses. Acha-se no direito de ser um justiceiro, ao mesmo tempo que comete várias injustiças. Se incomoda com as pessoas que tentam mudar a realidade e tem uma forte personalidade egocêntrica e quer reproduzi-la. Tony Soprano não é um personagem comum por suas ações criminosas, mas é um personagem comum por sua personalidade centralizadora e egoísta, tão comum na dita família tradicional brasileira.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Em pleno século XXI ainda precisamos responder: Direitos humanos são aqueles que protegem bandidos?

A evolução da humanidade como sociedade organizada tem relação íntima com a luta pelos direitos humanos. Foi esse processo de muitas datas que hoje podem garantir direitos mínimos a toda e qualquer pessoa. Para a sociedade, essas garantias, devem ser motivos de alegria, afinal estamos falando do direito de ser, de viver, das liberdades de pensamento, de crença e de expressão. Também estamos falando de democracia, não existe uma sociedade democrática se não há a garantia dos direitos humanos. De dignidade, direito ao trabalho, à educação, à saúde e à moradia. Infelizmente essa luta ainda não acabou. Em pleno século XXI ainda precisamos do empenho de muita gente para progredir como sociedade de direitos.

Na minha infância eu sempre acreditei que a humanidade vivia em progresso. Seja o que for, aconteça o que aconteça, as coisas mudavam e para melhor. Isso era certo para mim. Porém, infelizmente, a minha entrada no mundo adulto me provou outra coisa. As coisas podem piorar e a roda da evolução pode retroceder. Isso fica claro quando sujeitos como Silas Malafaia e Bolsonaro ganham visibilidade, quando discursos de “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos para humanos direitos” são repetidos sem reflexão, quando uma juventude universitária ganha uma ideologia reacionária e de ódio. Afinal, pra que (m) serve teu conhecimento?

Pixação nos muros da Universidade Federal de Sergipe (UFS) – Aracaju – SE

Essa juventude entende que a retirada de direitos de alguns é importante para que eles aprendam e se concertem, enxergam que o jovem que está na criminalidade é um vagabundo, um caso sem relação com a estrutura de sociedade que vivemos, tem visão maquiavélica, onde o mal são os “outros” e o bem somos “nós”. Mas quem somos “nós”? Quem são os “outros”?

Os “outros” são aqueles que durante toda a sua vida foram retirados seus direitos, os “outros” são aqueles sem dignidade, aqueles que não se enxergam entre “nós”, aquele que “nós” separamos com um muro, excluídos, aquele que “nós” olhamos feio quando está por perto. Infelizmente, a nossa sociedade é construída na base da indiferença. E é esse tipo de mentalidade que precisamos aprofundar. Retirar direitos para aprender a se colocar no seu lugar ou garantir direitos para uma sociedade melhor e mais igualitária?


Que aqui fica bem claro não ser um texto maquiavélico, como já dito antes. Ninguém aqui, em sã consciência, acredita que a retirada de direitos provocada pelo “outro” seja encorajada. A intenção é refletir sobre a estrutura de sociedade que vivemos e como essa estrutura precisa ser revolucionada para uma sociedade melhor. Deixo aqui a reflexão, da importância de romper com o olhar da tradição, da importância de não naturalizar nem legitimar ações de ódio, da importância de ajudar na construção dessa sociedade. Ela é possível!